COMITÊ "O PETRÓLEO TEM QUE SER NOSSO" DO RIO GRANDE DO SUL convida todos os membros da sociedade, sindicatos, estudantes, organizações políticas ou religiosas, ou qualquer outra pessoa que estiver interessada, para lutar junto conosco pela reestatização da Petrobrás, pelo fim da ANP, e para que o Pré-Sal recém descoberto traga benefícios ao povo brasileiro e não as multinacionais do ramo do Petróleo.Nosso comitê se reúne semanalmente ás quartas-feiras, 18h, na sede do SINDIPETRO/RS em Porto Alegre, Rua General Lima e Silva, 818, Cidade Baixa.Venha fazer sua a causa que deve ser de todo brasileiro!

AGENDA:
15/12 Ato em Porto Alegre contra o 10º Rodada de Leilões do nosso petróleo e gás
17/12 Ato Político-Cultural no RJ, na Candelária
18/12 Vigília em frente à ANP - RJ

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Entrevista com Ildo Sauer

UMA PROPOSTA PARA O PRÉ-SAL

`O modelo criado em 1997, e ainda vigente, previa um prêmio para quem corresse o risco exploratório. No pré-sal não existe mais risco; o modelo atual não tem mais sentido` entrevista a Alvaro Caropreso, Armando Sartori e Raimundo Rodrigues Pereira (Revista Retrato do Brasil - Nº 15 - outubro-novembro de 2008)



ILDO SAUER é um dos maiores especialistas do País na área de energia. É doutor em Energia Nuclear pelo famoso Massachussetts Institute of Technology (MIT). Foi um dos gerentes de projeto do reator do submarino nuclear da Marinha brasileira. É professor titular do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras por quase cinco anos no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É também um militante político: junto com Luiz Pinguelli Rosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), formou a principal dupla de assessores do Partido dos Trabalhadores para a formulação da política energética do Instituto da Cidadania, em torno do qual o então candidato Lula agregou grupos de intelectuais mobilizados contra as idéias neoliberais.

Sauer é também uma pessoa corajosa. Ao ser afastado da direção da Petrobras, há um ano, disse, em carta pública, que saía `sem alegria e sem espanto` e lembrou `as dramáticas disputas econômicas e políticas` existentes no setor. A propósito, falou das `enormes` pressões feitas no fim de 2002 para que o governo Lula, recém-eleito e ainda não empossado, desmantelasse uma das peças básicas do modelo de setor elétrico imaginado no Cidadania, que consistia em acabar com o `mercado livre` de energia. E mostrou os enormes prejuízos que esse mercado, afinal aprovado pelo governo do PT, tinha causado para o setor estatal.

No último dia 22 de setembro, no Rio de Janeiro, Sauer foi homenageado pela diretoria da Associação dos Engenheiros da Petrobras e discursou para um público de cerca de 200 pessoas, apresentando uma `Proposta para o Pré-Sal`. Retrato do Brasil Retrato do Brasil Retrato do Brasil Retrato do Brasil Retrato do Brasil foi ouvi-lo sobre essa iniciativa.

Retrato do Brasil: A exploração do petróleo do chamado pré-sal gerou um debate nacional. O senhor conhece o assunto por dentro. Na sua opinião, o que deve ser feito imediatamente?

Ildo Sauer: A descoberta é produto de um processo de anos, que se intensificou na recente gestão da Petrobras, quando a direção autorizou perfurações para comprovar a hipótese da existência de petróleo na chamada camada pré-sal. Pode-se demonstrar que essa descoberta deve-se a uma estratégia consciente da Petrobras, em razão de sua história. E é, também, inteiramente justo, política e tecnicamente, atribuir à Petrobras a missão de completar o processo exploratório de todo o recurso do pré-sal, que potencialmente se estende do Espírito Santo a Santa Catarina, compreendendo as bacias de Santos, de Campos e do Espírito Santo. A Petrobras detém a capacidade técnica, as articulações empresariais tecnológicas e mesmo a capacidade financeira para cumprir essa missão. Parece-me urgente que o governo, por decisão do Conselho Nacional de Política Energética, instrumentalizado na forma da legislação vigente, exercendo assim o que determinam os artigos 20 e 177 da Constituição, contrate a Petrobras para cumprir essa missão pelo custo do serviço. O Tesouro Nacional tem recursos substantivos: hoje, por exemplo, há 200 bilhões de dólares de reservas. A própria Petrobras tem grande capacidade financeira. Em um período de dois a três anos, é possível fazer o número de perfurações e testes necessários para que se possa delimitar exatamente a configuração do petróleo e do gás da camada pré-sal.

A informação existente é de que a formação geológica do microbiolito, o tipo de rocha onde está o petróleo, vai de Santa Catarina até o Espírito Santo, numa área de uns 200 km por 800 km. O que falta é definir exatamente se se trata de uma espécie de `continente` de microbiolito embebido do óleo ou se são bolsões formando um `arquipélago`. Ou seja, se se trata de um campo único ou de uma seqüência de campos. Isso só pode ser feito por meio de um esforço, com poços exploratórios iniciais, seguido de outro esforço, com os furos e testes para avaliar o comportamento dos reservatórios na exploração de longo prazo. Desta forma, se
poderá fazer um plano para desenvolver a produção. Assim se poderá ter um orçamento dos custos, das várias possibilidades de exploração, de financiamento. E, ao mesmo tempo, avançar tecnologicamente nas atividades de produção, como a Petrobras já está fazendo. E, como certamente, outras empresas, como a Exxon, por exemplo – que já anunciou para outubro o início de seus trabalhos na área na qual é operadora, pouco além do campo de Tupi -, vão fazer. Insisto que o Brasil, por meio da Petrobras, que descobriu o petróleo do pré-sal, deve anunciar com clareza, já, que vai planejar a sua exploração. Não deve deixar essa iniciativa para o chamado livre mercado.

RB: O governo, aparentemente, estuda criar, logo, uma empresa ou entidade para o petróleo do pré-sal. E, desde que a Petrobras perdeu o monopólio da exploração do petróleo, em 1997, foram feitas nove rodadas de licitação de áreas para exploração por qualquer empresa. Cinco dessas rodadas foram realizadas no governo Lula. A criação desse ente estatal no momento não é a tarefa mais urgente?

IS: Não acho. Essa discussão deve ser feita. Mais urgente, no entanto, é definir claramente, e dizer publicamente, que a Petrobras vai realizar a tarefa inicial indispensável ao planejamento da exploração do recurso descoberto e afirmar, também claramente, que novos contratos de concessão para a exploração do petróleo em toda a área do pré-sal não têm mais sentido. Esse modelo, criado em 1997, e ainda vigente, prevê um prêmio para quem corresse o risco exploratório. No pré-sal, não existe mais risco exploratório; no pré-sal, o modelo atual não tem mais sentido. As tecnologias para fazer isso são inteiramente conhecidas e, no mundo, a empresa que detém a capacidade mais avançada para realizar essa tarefa é a Petrobras. E a legislação brasileira permite que o governo a contrate, via ANP [Agência Nacional de Petróleo], via Ministério das Minas e Energia ou até via Tesouro Nacional, que é o detentor das ações do governo brasileiro na Petrobras e quem representa a União nas assembléias gerais.

RB: Como está a situação da exploração do petróleo do pré-sal hoje?

IS: A Petrobras já furou mais de quinze poços exploratórios no pré-sal. E também já começou a extrair comercialmente petróleo da camada mais superficial do pré-sal, no Campo das Baleias, em Jubarte, Espírito Santo. O presidente Lula esteve lá no dia 2 de setembro, na cerimônia que marcou politicamente o início da exploração. Nas diversas rodadas de concessão de blocos de exploração de petróleo no mar já realizadas, entraram todas as grandes petroleiras, na maioria, em associação com a Petrobras e, em poucos casos, sozinhas. A Exxon, por exemplo, no bloco que já citei, é a operadora, mas a Petrobras tem uma parte no empreendimento, 40%.

RB: Como as atuais concessões afetam o modelo futuro a ser definido para a exploração do pré-sal?

IS: Há três situações, dependendo da configuração do petróleo que vier a se comprovar. Uma ocorre quando o petróleo está num bolsão isolado, não conectado a outro, e a empresa encontra petróleo, que está, portanto, inteiramente contido no bloco a ela concedido. Portanto, pela legislação vigente, esse petróleo cabe ao concessionário, o qual terá, como dever, ao desenvolver a exploração da área, apenas pagar a participação especial que, pela legislação vigente na época em que o contrato de concessão foi assinado, se limita ao máximo de 40% do valor do petróleo produzido.

Outra situação, que já está aparentemente confirmada com o campo da Petrobras em Iara, perto de Tupi, é a de o campo descoberto se estender para além da área que configura o bloco concedido. Nesse caso, parte do petróleo pertence ao concessionário e, na proporção em que o campo se estende para além da concessão, à União, ao povo brasileiro, portanto. E a terceira possibilidade é a hipótese de um único campo gigantesco, com até mais de 90% do petróleo do pré-sal, que, dessa forma, pertenceria à União.

De qualquer maneira, em qualquer das hipóteses, uma fotografia clara da situação geológica e dos problemas jurídicos a serem discutidos só pode ser definida após a conclusão desse esforço exploratório para delimitar o posicionamento e a quantidade recuperável de petróleo, o que também dará as bases para um plano de avaliação.

Portanto, hoje já temos a seguinte situação: o petróleo descoberto pertence parcialmente aos concessionários e parcialmente à União. Pela Constituição, todo petróleo pertence à União. Deixa de pertencer somente no momento em que é produzido por um detentor de contrato de concessão.

RB: Qual é a fronteira do pré-sal?

IS: Aparentemente, o petróleo do pré-sal está contido na faixa de 320 quilômetros que delimita a zona de exploração econômica exclusiva do País. Aí já existe um problema: é preciso calcular essa zona, não só a partir do litoral continental do País, mas também das ilhas que estão contidas nessa zona. A Marinha brasileira, por exemplo, a define como sendo mais ou menos metade da área continental do Brasil, mais de 4 milhões de quilômetros quadrados, pois inclui, por exemplo, para medir a zona econômica exclusiva, as ilhas brasileiras de São Pedro e São Paulo, localizadas a cerca de mil quilômetros do nosso litoral. Mas nem todos os países reconhecem a soberania brasileira e o direito de exploração exclusiva dos recursos nessa zona. Os EUA, por exemplo. Aliás, é de se perguntar se a reativação da IV Frota dos EUA, originalmente lançada para deter o avanço do nazismo no Atlântico Sul durante a Segunda Guerra e, depois, desativada, apenas coincidiu com o anúncio da descoberta de Tupi nessa região, certamente monitorada pelos aparelhos de inteligência de muitos países. Daí o esforço exploratório tornar-se ainda mais urgente, para que, o quanto antes, a nação brasileira possa determinar a exata extensão desses recursos, de modo a assegurar sua soberania sobre eles, inclusive com a definição das políticas de defesa necessárias nesse sentido.

RB: A sua conclusão, então, é mesmo a de que a questão política primeira é a Petrobras delimitar e medir o petróleo do pré-sal?

IS: A determinação do volume de recursos no pré-sal é urgente pelo seu duplo significado, econômico e estratégico. Há, em decorrência da legislação em vigor, uma questão jurídica a ser resolvida na delimitação dos campos para se determinar qual o volume que pertence a cada um dos concessionários de contratos. Haverá uma unitização global ou uma unitização por cada ilha, se for um `continente` ou se for um `arquipélago`.

Unitização é o processo pelo qual, de acordo com as práticas reconhecidas mundialmente, a exploração se faz sem a deterioração da produtividade dos vários poços. Toda vez que se descobre que campos inicialmente tidos como independentes se comunicam e se constituem em um único campo, exige-se, pela boa prática para o aproveitamento do recurso, que se faça a unitização. Essa é uma das razões fundamentais pelas quais se precisa urgentemente concluir o processo exploratório e formular o plano de avaliação, que vai dar as bases técnicas para que as questões jurídicas possam ser resolvidas satisfatória e ordenadamente, no interesse da nação brasileira.

A segunda razão é estratégica. Em termos geológicos, a camada do pré-sal – com ou sem petróleo – pode se estender ou mesmo ultrapassar os limites da ZEE reconhecida até recentemente. Quem pode querer disputar o petróleo do pré-sal, de uma forma ou de outra? Há uma nova configuração geopolítica internacional e o petróleo continuará tendo enorme importância nessa conjuntura. O petróleo deve permanecer pelas próximas décadas como o grande insumo da produção e da mobilidade de bens e pessoas. Apesar dos esforços de mudança tecnológica nos processos de uso final mais eficiente e da busca de uma matriz energética menos baseada em combustíveis fósseis, suscitada pela discussão em torno das mudanças climáticas, os recursos de petróleo convencional, estimados ainda em 2 trilhões de barris remanescentes, serão explorados ao longo das próximas décadas a uma razão superior à atual, de 85 milhões de barris por dia, dado o crescimento populacional e econômico. A estrutura produtiva mundial, organizada a partir da segunda Revolução Industrial, depende do petróleo para a manutenção dos elevados níveis de produtividade do trabalho humano incorporado na produção e na circulação, o que permite enormes excedentes econômicos. O petróleo tende a manter seu elevado valor como insumo, com capacidade de permitir a produção de enorme excedente econômico, que é em torno do que se move o capitalismo. Isso está ainda mais claro especialmente agora, depois do estouro da bolha especulativa, quando se reconheceu mais uma vez que a origem da riqueza e do valor sempre está na incorporação do trabalho nos processos de produção. A busca de maior produtividade é o que permite a produção de maior excedente.

Por essa razão é que aqueles países que dependem das maiores reservas atuais e daquelas que vierem a se configurar se situam num quadro muito especial e complexo em relação à geopolítica mundial, da forma que se viu longamente no século passado, com inúmeros conflitos pelo domínio das áreas onde potencialmente existe esse recurso.

RB: Entendemos que a sua proposta envolve não apressar decisões que só podem ser tomadas a médio prazo. Aparentemente, há uma certa urgência em se formar um núcleo de pessoas que passe a decidir as questões do pré-sal...

IS: Hoje, a União tem dois caminhos para fazer o trabalho na área do petróleo. Um, seguindo a Lei 9.478, a lei da liberalização, que permite as concessões. Outro, pelo fato de a possibilidade ainda estar aberta na Constituição, de contratar a produção do petróleo diretamente em seu nome. Daí a proposta de contratar imediatamente a Petrobras para que ela conclua o processo de exploração do pré-sal que apenas foi iniciado. Nesse sentido, não se deve definir uma solução de configuração institucional para o controle da produção, desenvolvimento e eventual comercialização do petróleo sem antes tomar posição e resolver essas preliminares essenciais.

RB: Gostaríamos que o senhor falasse da gestão de um processo como esse, incluindo aí sua experiência com a aplicação do novo modelo do setor elétrico. Em uma palestra recente, o senhor disse que, no governo Lula, deixou a Universidade de São Paulo e foi para a direção de Gás e Energia da Petrobras e, `de repente`, se deu conta de que estavam fugindo do setor elétrico estatal bilhões de reais, por meio de manobras, por jogos financeiros e negociais.

IS: No setor elétrico, a idéia era centralizar a comercialização da energia por meio de uma entidade estatal. Ela compraria energia das usinas estatais já amortizadas, por um preço que lhes garantisse seu fortalecimento e novos investimentos, e a venderia a um preço abaixo dos valores internacionais. Portanto, parte do excedente econômico iria como incentivo à produtividade e à inserção internacional da economia brasileira por meio de uma energia com preço abaixo dos custos marginais internacionalizados. Essa diferença seria a existente entre o custo médio da geração da energia elétrica no País e o custo marginal, que é o custo da energia nova. Essa parte iria para o sistema produtivo. Este teria, assim, uma energia de menor tarifa do que aquela a que o mercado competitivo levaria, porque esse mercado sempre vende qualquer produto a partir do custo marginal, da última unidade produzida.

Outra parte viria do fato de as estatais produzirem energia muito barata graças ao seu sistema de cooperação entre usinas e de muitas delas já estarem praticamente amortizadas. O governo pegaria a diferença entre o custo médio da energia comprada das estatais e o preço de venda dessa energia pela comercializadora pública e a apropriaria socialmente. A estimativa era de que isso poderia gerar 300 milhões de megawatts-hora, vendidos a 100 reais o megawatt-hora. Com um custo da ordem de 60 reais o megawatt-hora, seria gerado um excedente anual de 10 a 15 bilhões de reais, dependendo do ponto em que se fizesse a partição entre os consumidores do sistema produtivo e o sistema social. Essa era a proposta, mas repentinamente ela ficou no papel.

RB: E como isso aconteceu?

IS: Não se capitalizaram as empresas estatais, como estava previsto. O governo Lula manteve a regra básica de criação do mercado livre, que era a descontratação das estatais, já no dia 1º de janeiro de 2003. Essa descontratação, a base de 25% ao ano, se estendeu entre 2003 e 2006, quando todos os contratos iniciais das estatais foram rompidos, como previsto no modelo liberal. Ao mesmo tempo, criou-se capacidade fictícia, com usinas termelétricas sem gás natural e sem energia vendida. Dois mil megawatts eram energia da Argentina. Estavam sendo pagos e não tinham condições de serem supridos. Outro exemplo: a energia das usinas térmicas de Uruguaiana e Cuiabá, sem acesso a gás natural firme, era computada como existente. O programa das energias alternativas, baseado em usinas eólicas e em pequenas centrais hidrelétricas foi contratado e não foi implementado. Na base da transferência de riqueza, estava um modelo de precificação de energia de curto prazo, em que se ancorava o dito mercado livre, que era uma fraude. A base do preço de curto prazo vinha de um programa computacional, o Newave, desenvolvido na Eletrobrás. Daí saía um `preço`, cuja função era orientar o operador se ele devia ou não guardar água. No sistema elétrico brasileiro, em grande parte hídrico, se se guarda água hoje, se queima combustível - gás, óleo, carvão. E isso tem um custo. Se a água for guardada sem necessidade, se no futuro não for usada, é como se se estivesse jogando combustível fora. Então, o Newave tem a função de orientar a gestão da água no tempo. Mas esse indicador passou a ser usado como legitimador de preço no mercado livre. E esse mercado cresceu, no governo Lula. De quase nada para 12 mil megawatts médios, um quarto de toda a energia elétrica brasileira consumida. Com a descontratação das estatais num período de sobra de energia – logo após o apagão do setor elétrico, que reduziu o consumo - e com essa fraude em torno do preço de liquidação dos negócios no curto prazo, se fez uma enorme transferência. Em 2006, os próprios comercializadores anunciaram que os cerca de 500 consumidores livres, que compraram cerca de 60 milhões de megawatts-hora (8 mil megawatts médios) em 2005, tiveram um ganho de 2,6 bilhões de reais. Se eles contratassem energia pelo custo estrutural regulado pela ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica], pagariam 109 reais o megawatt-hora. Compraram a 61 reais dos comercializadores. E estes compravam a 18 ou 20 reais das geradoras, a maioria, estatal. Então, no bojo da reforma que tinha o objetivo de atender às propostas formuladas em 2002, veio o cavalo-de-tróia do mercado livre, que praticamente descapitalizou todas as estatais de energia elétrica.

RB: Como era a proposta do Instituto da Cidadania no setor de petróleo?

IS: O centro da reforma era a criação de novos mecanismos institucionais e a mudança do regime de concessão. Reconhecia-se que alguns processos tinham avançado demasiadamente e não se podia voltar trás. Mas procurava-se estancar a apropriação do excedente em curso. Seriam escolhidas para explorar petróleo as empresas mais capacitadas em termos tecnológicos e empresariais e que oferecessem ao Estado, nos contratos, tanto mais retorno quanto menor fosse o custo de extração. Se o campo produzisse 10 mil barris de petróleo por dia, esse volume seria quase que inteiramente do produtor. Se produzisse 20 mil, 30 mil barris e daí em diante, a fração do valor produzido destinada ao Estado seria progressivamente maior, podendo chegar até 90% em campos altamente produtivos.

Mas o modelo de 1997 foi mantido, mesmo com objeção de muitos dirigentes, inclusive da Petrobras. Achava-se que não se poderia continuar o regime de rodadas de concessão. Houve ações judiciais. A oitava rodada, por exemplo, foi barrada na Justiça. Os grupos multinacionais encastelados no Instituto Brasileiro do Petróleo iam freqüentemente ao Ministério de Minas e Energia e à Casa Civil do governo Lula para defender as novas rodadas e um acelerado ritmo de exploração, com o discurso de que isso manteria a credibilidade internacional da gestão econômico-financeira do governo brasileiro.

RB: As concessões já feitas sobre o pré-sal valem para sempre? Quem recebeu uma concessão, dada aparentemente para explorar o pós-sal, tem automaticamente concessão para explorar o pré-sal?

IS: As concessões foram dadas com três anos para a tarefa de exploração. Tendo sucesso, o concessionário tem 20 anos para produzir. Quanto a até onde vai o bloco da área de concessão, evidentemente ele não pode chegar até o centro da Terra...

RB: Como foi a suspensão da nona rodada?

IS: Desde os anos 1970, sabia-se que abaixo da camada do sal na bacia de Campos havia anomalias que potencialmente indicavam a presença de rocha com estrutura que poderia conter petróleo. No governo Lula, a nova direção da Petrobras toma a decisão de estender os furos em poços já existentes, para testar o pré-sal. Finalmente, em maio de 2007, a Petrobras comprova a existência de hidrocarboneto leve, de alta qualidade, no campo de Tupi, na bacia de Santos. Essa descoberta é comunicada ao presidente da República pelo presidente e pelo diretor de Exploração e Produção da Petrobras, numa reunião que levou mais de cinco horas, com explicações detalhadas. A Petrobras entendia que era hora de revisão do marco regulatório e de suspender toda e qualquer nova licitação de campos na área do pré-sal. Houve uma disputa no governo. E a rodada foi mantida por quase meio ano. Em outubro de 2007, poucos dias antes do leilão de concretização da nona rodada, o presidente da República foi convidado a ir até o Cenpes, o centro de pesquisas da Petrobras, para ver os testemunhos do campo de Tupi. E aí ele toma a decisão de finalmente retirar da licitação 41 blocos.

O curioso é que só foram retirados os blocos em torno de Tupi; não foram retirados da nona rodada os blocos que estavam sobre o pré-sal no chamado arco de Cabo Frio, finalmente arrematados por notório empresário nacional, que recrutou quadros técnicos na Petrobras na antevéspera do leilão. Essa é uma prova de que o maior risco é o de que o acesso aos recursos e a partilha da produção sejam comandados a partir dos interesses urdidos nos palácios, sem qualquer participação popular e debate mais amplo. O açodamento na definição dos modelos de partilha pode estar mais ligado ao calendário eleitoral do que ao aproveitamento dos recursos no interesse do povo brasileiro.

RB: Como evitar esse risco? O senhor deu uma entrevista aos jornais falando sobre a necessidade de mobilização popular para se ter legitimidade e apoio para as decisões.

IS: Uma vez definido e avaliado com precisão o petróleo do pré-sal, a estratégia de exploração deve ser decidida por meio de um amplo debate popular. Para isso é preciso retomar, desde já, a campanha que deu origem à Petrobras, com a recuperação, no processo de discussão, do sentimento popular de soberania, autonomia e busca de uma trajetória nova para a nação brasileira. Num contexto desses, aí sim, deve-se definir o marco institucional, empresarial e jurídico que permitirá o desenvolvimento desses recursos no ritmo apropriado e no rumo certo. Os encarregados da gestão desses recursos, na entidade a ser criada com esse fim, devem ser da ampla confiança do povo brasileiro. Do contrário, estaremos escorrendo para um espaço onde vão prevalecer mais uma vez os interesses dos grandes oligopólios internacionais e nacionais vinculados à apropriação do excedente econômico gerado no setor de energia, seja ela de eletricidade hidráulica, seja de petróleo, seja também na área dos biocombustíveis, em que as entranhas do Brasil vêm sendo abertas para plantar cada vez mais cana e também para produzir biodiesel à base de soja...

RB: Essa é uma tarefa política?

IS: É. E a luta política é complexa. Muitas vezes, propostas públicas são apresentadas com um certo apelo popular, têm a aparência de um presente. Mas, no fundo, são uma armadilha. É importante rever a experiência do setor elétrico, porque no petróleo os interesses são maiores. Se a reserva do pré-sal tiver a forma de um continente, ela pode chegar a 350 bilhões de barris de petróleo. Nesse caso, o Brasil se equipararia à Arábia Saudita, com as maiores reservas do mundo. Poderia produzir, a médio prazo, como os sauditas, de 10 a 12 milhões de barris por dia. Isso geraria um excedente econômico próximo de 1 bilhão de dólares por dia, cerca de 300 bilhões de dólares por ano quando em plena produção.

RB: Aqui chegamos à discussão da estratégia de produção...

IS: Exatamente. Deve-se reconhecer que há uma tendência normal de valorização do petróleo no futuro. Talvez a estratégia que a nação brasileira deva seguir seja mais prudente: a de não exaurir imediatamente, com uma taxa de exploração elevada, toda a sua reserva. Essa é uma discussão importante e estratégica: a do ritmo de exploração desses recursos. Produzir o petróleo o mais rápido possível, vendê-lo e transformar o resultado em reservas monetárias, por exemplo, não vai resultar automaticamente em sua conversão, no futuro, em capacidade produtiva, educacional, científica e tecnológica, em infra-estrutura e saúde para o povo. Formar um excedente monetário no exterior, colocar em um fundo soberano para ajudar, como se propõe, a financiar as chamadas multinacionais brasileiras no exterior que existem hoje, quando o País tem uma inserção subordinada no sistema produtivo internacional, não deve ser a melhor opção. Talvez isso não permita nem sequer uma valorização superior à que o próprio petróleo teria se permanecesse no subsolo dentro de uma estratégia de exploração definida a longo prazo.

Essa é uma discussão relevante. E mais uma razão para que não se vá com muita sede ao pote, com o risco de quebrá-lo.

RB: Resumindo, quais seriam os passos para uma exploração do pré-sal que realmente interessa ao povo brasileiro?

IS: Como já disse, é necessário que, antes de qualquer partilha, feita sem conhecer o recurso a ser partilhado, se avance na exploração do petróleo. Que se aprofunde o conhecimento do pré-sal. Que a Petrobras seja contratada, nos termos da lei brasileira, diretamente para concluir o esforço exploratório; que se delimite o pré-sal; que se faça um plano de avaliação; que se determine um projeto possível e equilibrado de produção. Isso tem um custo e exige um enorme esforço de planejamento exploratório. Temos de escolher, na região, pelas indicações geofísicas reveladas pelos furos já feitos, exatamente onde mais é necessário furar. E um furo desses pode custar 60 milhões de dólares! Se forem necessários mais cem furos, isso custaria cerca de 6 a 10 bilhões de dólares em investimentos. Pelas razões que apontei, esse plano exploratório precisa ser concluído! É tecnicamente indispensável que se faça esse investimento, que se delimite o campo. Se for único, obviamente terá um só operador. Quanto aos concessionários que já estão lá, no momento adequado, se achará como resolver o problema.

RB: E o passo seguinte, qual seria então?

IS: Aí então deve-se definir uma estrutura institucional capaz de reconhecer, na experiência brasileira em outros setores e na experiência internacional, mecanismos pelos quais o controle público e social sobre a apropriação do excedente econômico, sobre a destinação dele para as prioridades debatidas amplamente, seja possível. E é evidente que, também nessa fase, a Petrobras deverá estar na liderança empresarial e industrial do processo. Como já acontece hoje, a Petrobras atua como grande integradora de uma complexa rede de tarefas, serviços, equipamentos e processos inteiramente interligados. É talvez uma das mais sofisticadas redes tecnológicas existentes no País. Faz conciliar atividades simultâneas de intervenção na natureza, de limitação do risco geológico, da melhor estratégia de intervenção, de gerenciamento de risco empresarial e de risco financeiro. Enormes quantidades de dinheiro fluem nesse conjunto de atividades. E, no processo atual da estrutura econômica mundial, financeira e produtiva, é preciso saber fazer essa condução.

RB: Como o senhor vê a participação do capital estrangeiro nessa etapa?

IS: A Petrobras trabalha com as chamadas oil service companies. São empresas que prestam serviços geofísicos, que fazem equipamentos e prestam serviços – de plataformas, dutos, perfuração, sistemas de comando e controle – e toda uma rede de tarefas. São empresas brasileiras e internacionais. E certamente muitas vão participar de um conjunto grande de atividades novas necessárias à exploração do pré-sal. Novas empresas também terão de ser criadas. Agora, é preciso ver que essas empresas também se apropriam de parte do excedente econômico criado e que o País deve trabalhar para que a maior parte dessa riqueza fique aqui.

Uma vez definido o volume dos recursos descobertos e o ritmo pelo qual se vai estrategicamente desenvolver a produção, há um conjunto de ações que precisam ser desenvolvidas simultaneamente. Isto é, toda a capacitação das indústrias e serviços de apoio, que será enorme, precisa ser planejada e articulada. A política industrial, a política tecnológica, a política científica e a política ambiental precisam acompanhar essa estratégia. Há instituições a serem criadas e fortalecidas.

RB: A Petrobras tem capacidade para conseguir os investimentos necessários?

IS: É claro que o volume de investimentos tem de ser concatenado. Mas não há dúvida de que, para um petróleo como o do pré-sal, praticamente sem risco exploratório, não faltará mecanismo de financiamento. Uma ou outra cassandra do caos diz que não há financiamento, especialmente agora que a crise financeira se abateu sobre o mundo. Não é verdade. Mas é preciso também que o governo remova as restrições hoje existentes na área de financiamento dos bancos públicos, do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e social]. Há restrições decorrentes da visão dos anos 1990, da política de Estado Mínimo, de controle do déficit público especialmente a partir da contenção do investimento estatal, dessa visão que limita a capacidade de endividamento do setor público.

RB: Qual o modelo que está se anunciando para a entidade pública de gestão do petróleo do pré-sal?

IS: A proposta que se delineia hoje é a de se criar uma pequena empresa que, em nome do governo, geriria a contratação da produção do petróleo por qualquer tipo de empresa, mantendo-se a ANP em funcionamento, no regime atual, para todas as áreas do petróleo, exceto a do pré-sal. Com isso, parece-me que estamos repetindo o erro do setor elétrico, pois criam-se instituições e mecanismos diferentes, com brechas abertas entre eles, para as contradições que permitirão a possibilidade de se continuar contratando para áreas que não são do pré-sal e áreas que eventualmente venham a ser do pré-sal. Numa empresa assim, parece-me, estará o foco de toda a pressão política, econômica e geopolítica. É ingênuo acreditar que uma nova empresa, com uma centena de pessoas, possa ser nomeada a partir do Palácio do Planalto para supervisionar esse processo complexo e resistir às pressões dele decorrentes.

RB: Essa empresa poderia ser a Petrobras?

IS: Deve haver um ente público que tome posse dos recursos do pré-sal que são da União. Mas a empresa notoriamente capacitada para liderar o processo prático de exploração e produção desses recursos e para realizar os estudos que ajudarão a resolver as pendências decorrentes do fato de parte do pré-sal já ter sido concedida a muitas empresas é a Petrobras. Uma empresa de pequeno porte, com processos de indicação dos seus gestores nos moldes em vigor hoje e em todos os governos recentes, carrega o grande risco de repetir a experiência negativa do setor elétrico e de muitos outros campos. As multinacionais do petróleo estarão aqui de prontidão, batendo à porta no dia-a-dia para que essa empresa lhes dê direitos. Já temos exemplo do que acontece na hora da partilha. Veja-se o campo de Bijupirá-Salema, na bacia de Campos, onde a Shell produz cerca de 60 mil de barris de petróleo por dia que saem diretamente de alto-mar para o exterior. Isso jamais seria permitido nos EUA, por exemplo, onde a exportação de petróleo só é possível com autorização direta do presidente da República.

NOVA CAMPANHA DO PETRÓLEO UMA NOVA MOBILIZAÇÃO SERVIRÁ PARA RETOMAR A DISCUSSÃO DO RUMO A SER DADO AO PAÍS

Retrato do Brasil: Gostaríamos que o senhor avaliasse o papel da Petrobras de modo mais amplo, dentro da história da indústria do petróleo.

IS: Em primeiro lugar, deve-se observar também que petróleo é, cada vez mais, um recurso geopolítico. As grandes reservas mundiais, hoje, estão sob o controle dos Estados nacionais e de suas empresas estatais. O sistema estatal brasileiro foi fundamental na história do desenvolvimento do País. Ele foi fruto de uma intervenção clara do Estado na economia, com a criação dos sistemas Telebrás e Eletrobrás, da Companhia Siderúrgica Nacional, do BNDES. Nessa iniciativa estatal, destaca-se, acima de tudo, a criação da Petrobras. Nas décadas de 1940 e 1950, o povo brasileiro reconheceu o papel emergente e fundamental do controle da energia para o incremento da produtividade e a modernização produtiva do País. Foi, por isso, às ruas e montou a campanha `O Petróleo é Nosso`, finalmente vencedora com a criação da Petrobras, em 1953.

RB: Quando se pode dizer que tem início a orientação que levou à descoberta do pré-sal?

IS: Quando se esgota o chamado `Milagre Brasileiro`, do crescimento acelerado dos anos 1968-1973, quando a economia mundial entra em crise, com a inflação americana, com a alta do preço do petróleo e, finalmente, com a política de elevação das taxas de juros pelo Banco Central americano, se abate sobre o Brasil a questão do endividamento externo. O País fica sem divisas para comprar petróleo, cujos preços disparam nos dois surtos, o de 1973 e o de 1979. Na época, são criados no País o Pró-Óleo, que morreu e hoje sobrevive de certo modo no programa do Biodiesel; o Pró-Álcool, que floresceu graças a um conjunto de interesses industriais e agrícolas; o Programa Nuclear, que também acabou; e, acima de tudo, se delega à Petrobras a missão de buscar a auto-suficiência do Brasil em petróleo, para dar continuidade a um modelo econômico fortemente baseado no favorecimento da indústria automobilística e do transporte rodoviário. Essa foi uma armadilha deixada pela estratégia implantada nos anos 1950, a partir do governo de Juscelino Kubitschek.

Já em 1968, havia indícios de petróle no mar, na plataforma de Sergipe. E em 1975 a bacia de Campos começa a revela resultados. A partir dali, a Petrobras se aprimora na busca de petróleo no mar – em duas ocasiões, recebeu o prêmio mundia de tecnologia pioneira em off-shore – e passa a desenvolver tecnologia mais aceleradamente, com o desenvolvimento do Cenpes [Centro de Pesquisas da Petrobras], com alianças em todas as universidades e labo ratórios no Brasil e no exterior, com as chamadas oil service companies.

Com isso, criou-se essa capacidade complexa de intervir sobre o mar, de posicionar dinamicamente navios nos quais se penduram brocas estabilizadas com cerca de dez quilômetros de extensão, atravessando de dois a três quilômetros de água do mar e, em seguida, mais três a seis quilômetros de subsolo marinho para chegar ao pré-sal! São condições inteiramente desafiadoras, mesmo em plano mundial. Esforço comparável a esse só aconteceu no Mar do Norte, com o desenvolvimento da exploração do petróleo e do gás pela Grã-Bretanha e pela Noruega.

RB: O que significou para a empresa a era neoliberal?

IS: No debate atual, chegaram a dizer que a Petrobras já era uma empresa estrangeira. De fato, ainda subsistem na empresa resquícios da cultura Petrobrax, da época em que o governo Fernando Henrique Cardoso tentou mudar o nome da empresa para facilitar a transformação dela numa multinacional sem pátria. Ao examinar a geração de valor pela empresa, veremos que a avaliação de que a Petrobras é uma empresa estrangeira, pelo fato de grande parte de suas ações estar em mãos de estrangeiros e ser vendida na Bolsa de Nova York, é equivocada. No seu conjunto, ela continua sendo a maior realização histórica do povo brasileiro.

Nos anos 1990 e nos anos 2000, abriuse o capital da Petrobras, primeiro para a compra de ações com recursos do FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço], dos assalariados brasileiros, depois para investidores institucionais, como os fundos de pensão, depois para outras pessoas jurídicas no Brasil. Em seguida, foi-se à Bolsa de Nova York e lá se venderam, por 5 bilhões de dólares, 30% da Petrobras.

Isso deixou equivocadamente a impressão de que a Petrobras não é mais brasileira; de que é, na verdade, uma produtora de excedente econômico – de lucros! – para acionistas majoritariamente estrangeiros. Reside aí o maior equívoco na base do modelo institucional que estão a propor.

RB: Gostaríamos que o senhor detalhasse bem esse aspecto, pois estamos vendo cidadãos que nunca foram nacionalistas dizerem que é preciso fazer uma empresa pequena para tomar conta do petróleo do pré-sal porque a Petrobras é estrangeira.

IS: É preciso deixar isso claro. Vou usar um conceito fundamental para a compreensão do problema, que se chama criação de valor adicionado. O sistema Petrobras, mais importante é sua força de trabalho; a segunda é composta pelos seus acionistas, seus sócios; a terceira é a dos bancos que lhe emprestam dinheiro em troca de juros e vendem outros serviços, como seguros, etc.; a quarta é a dos governos que lhe dão acesso ao recurso natural, lhe dão garantia jurídica, lhe dão infra-estrutura, etc.

Em 2006, o valor agregado pela Petrobras, isto é, o que ela produziu menos o que o adquiriu de insumos, foi 120 bilhões de reais. Qual foi a destinação desse excedente econômico? Desse valor, 10,4 bilhões de reais foram para os trabalhadores, na forma de salários e benefícios; 10,9 bilhões foram para os bancos, em pagamento dos diversos tipos de serviços; e 27,4 bilhões, para os acionistas, sob a forma de lucros, embora, desse total, somente cerca de 9 bilhões, aproximadamente 30%, tenham sido pagos como dividendos – o restante permaneceu no sistema Petrobras, em nome dos acionistas, como reserva de capital para futuro investimento.

Dos 120 bilhões, a parte maior, 72 bilhões de reais, foi para os governos, sob a forma de royalties, participações especiais e toda natureza de impostos diretos e indiretos em torno da cadeia produtiva.

RB: Esse valor agregado às receitas dos três entes federativos – União, estados e municípios – está sendo bem aproveitado?

IS: De fato, é preciso examinar para onde foram esses 72 bilhões de reais. O petróleo que está sendo retirado é recurso não-renovável, pertence às gerações futuras e está sendo queimado, de uma certa forma, em investimentos ou gastos correntes que podem não resultar em qualquer melhoria significativa nas condições sanitárias, nas condições educacionais e nem na infra-estrutura em que vive a população. Há aí, então, uma nova lição a se tirar.

RB: Mas não se deve rever a política de venda das ações da Petrobras no exterior e a fatia que vai para os acionistas?

IS: Sim. A Petrobras já devia ter posto em prática uma política de recomprar suas ações, usando para isso dinheiro das reservas do País. As reservas têm o que se chama de uma arbitragem negativa. O governo paga juros de 10% a 14% ao ano para acumular essas reservas aqui dentro do Brasil por meio da dívida pública, enquanto os depósitos em dólares das reservas interna cionais rendem de 2% a 3% ao ano. Então, paga-se uma arbitragem negativa de cerca de 10% ao ano sobre as reservas. O governo poderia ter utilizado, em maio de 2007, quando o quadro estava claramente se alterando no Brasil e a Petrobras estava cotada na Bolsa de Nova York em 90 bilhões de dólares, cerca de 30 bilhões de dólares das reservas para melhorar a composição societária da empresa. Essa proposta foi levada ao conselheiro da Petrobras e ministro da Fazenda, Guido Mantega. Na ocasião, ele pediu silêncio, pediu para que a proposta não fosse divulgada, para que pudesse ser operacionalizada, mas ela não o foi. Claro que a composição societária poderia ter melhorado com isso!

No entanto, essa mudança não é essencial para que o desenvolvimento dos recursos do pré-sal possa ser feito pela Petrobras, desde que se construa um novo modelo regulatório. Esse modelo, como eu já disse, deve permitir que valor maior do que o atual – tanto maior quanto maior o volume de petróleo produzido – seja apropriado para fins públicos.

RB: O senhor disse que a empresa paga a uma série de fornecedores uma soma muito importante. Nela está também o valor que se agrega com o trabalho sobre o petróleo. Pela visão dos financistas liberais, o dinheiro é o que importa. Para eles, tecnologias e qualquer coisa se compram em qualquer lugar. Na Petrobras, o senhor preocupou-se com essa questão, na nova área dos biocombustíveis. Sua diretoria testou sistemas de agregação de valor junto à pequena e média empresa e, na produção de álcool, inclusive junto às cooperativas agrícolas. Gostaríamos que o senhor explicasse como a Petrobras poderia estimular a geração de valor fora do seu próprio sistema.

IS: Além do valor agregado diretamente nas atividades do sistema Petrobras, há dois outros. A previsão que se tem hoje é a de que, entre 2008 e 2012, sem considerar o pré-sal, o valor adicionado pelo sistema Petrobras diretamente no País é da ordem de 140 bilhões de reais por ano. A cadeia produtiva dos investimentos vai gerar outros 50 bilhões de reais por ano, em média, sem o pré-sal, no mesmo período. O pré-sal só entrará em grande escala depois de 2012. Além disso, a cadeia produtiva dos gastos operacionais para manter o sistema funcionando é de 55 bilhões de reais por ano.

RB: O que o governo Lula mudou nessa área?

IS: A partir de 2003, houve a definição correta de uma política de governo e de gestão da Petrobras no sentido de incrementar o conteúdo nacional dentro de um parâmetro mínimo para todos os tipos de atividades, de gasodutos a plataformas, refinarias, etc. Por exemplo, esse conteúdo nacional seria de 60% no caso das plataformas. Antes se dizia que a Petrobras é uma empresa internacional e, inclusive, mudaria o nome para Petrobrax, pois tinha de comprar em Cingapura ou onde quer que fosse mais barato. Não! A decisão tomada, correta sob vários pontos de vista, foi a de passar a fazer as plataformas dentro do País.

Primeiro, porque isso criou uma capacitação tecnológica enorme. A indústria naval brasileira renasceu com a contratação, dentro do País, de plataformas e de navios de todas as espécies, gerando uma grande quantidade de empregos e de processos tecnológicos de modernização.

E existe ainda o efeito direto dos insumos, do valor gerado dentro do País. A razão da correção está também nos custos, pois as plataformas no exterior subiram de preço extraordinariamente.

Em segundo lugar, está a própria disponibilidade e o controle dos cronogramas. É importante o exemplo de Barracuda e de Caratinga, plataformas feitas pela multinacional americana Hallyburton, que atrasaram cerca de dois anos! Ora, quando se deixa de produzir 150 mil barris diários de petróleo, isso significa uma valor enorme em dinheiro que não entra agora, mas vai para o fim da fila para entrar daqui a vinte anos! Esse exemplo mostra que a estratégia foi triplamente correta. Primeiro, pelo maior controle da Petrobras na construção dessas sofisticadas estruturas; segundo, pela questão do custo; e, terceiro, pela disponibilidade de uma base tecnológica agora já existente para o novo salto que deve ser dado em direção ao fornecimento de equipamentos e serviços, em um outro patamar, em decorrência do recurso do pré-sal.

RB: A Petrobras também está inserida em um mundo que debate a necessidade de diminuir a poluição, de controlar melhor os processos produtivos. Esse é um campo de vanguarda do qual, por exemplo, fazem parte os biocombustíveis e o problema de se combinar o uso do petróleo com outras fontes de energia.

IS: Toda a civilização como a conhecemos exauriu 1 trilhão de barris de petróleo para pular de 1,7 bilhão de pessoas para 6,8 bilhões de pessoas em um século. Hoje se extrai petróleo a uma taxa de 85 milhões de barris por dia, mas crescendo. Então, a tendência é a de que o segundo trilhão de barris seja exaurido ao longo dos próximos 20 anos e, o último trilhão, em meados da década de 2040. Nesse quadro, ainda existem outros cerca 4,5 trilhões de barris de óleos remanescentes de xistos e folhelhos betuminosos, como os do Canadá e, no Brasil, os de São Mateus do Sul, os óleos de águas profundas e ultraprofundas, como no pré-sal, e os óleos betuminosos, pesados, como os do Orinoco, na Venezuela, mais o óleo do Ártico, todos de custo de desenvolvimento muito mais elevado. Assim, passa a ser muito menor o excedente econômico, isto é, a energia líquida que se consegue colocar à disposição do sistema produtivo.

Desse quadro se depreendem duas coisas: mesmo com a tendência mundial de combater o uso de combustíveis fósseis, a lógica natural da estrutura produtiva hoje existente é a de que será consumida até a última gota de petróleo mais acessível. Também o será o gás natural, que tem cerca de 2 trilhões de barris equivalentes. A segunda conclusão é a de que haverá a possibilidade, pelos custos mais altos da exploração de petróleo e a necessidade de busca adicional de energia solar apropriada de outras formas – como energia hidráulica, eólica ou de processos de fotossíntese, que permita produzir combustíveis de qualquer natureza, como o Pró-Álcool brasileiro ou processos que usem biomassa de outras maneiras – e são diversos os caminhos sendo pesquisados. A Petrobras já vem atuando nessa direção. A estratégia traçada a partir de 2003 foi clara e deu resultados. E o ponto principal da estratégia foi, evidentemente, o de ter conteúdo nacional para que o processo fosse um motor do desenvolvimento econômico e social brasileiro.

UM NOVO PAPEL DO ESTADO O MODELO NEOLIBERAL MORREU. É PRECISO REDISCUTIR A HEGEMONIA DO CAPITALFINANCEIRO

Retrato do Brasil: Gostaríamos que, por fim, o senhor traçasse um panorama histórico ainda mais geral, que incluísse a questão da exploração do petróleo do pré-sal no quadro das diversas etapas de desenvolvimento do País. Nós o ouvimos, certa vez, na Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), criticar a teoria das vantagens comparativas do economista clássico David Ricardo. O senhor dizia que as vantagens naturais que o Brasil têm para a agricultura não fizeram que o ciclo de produção de cana-de-açúcar e o ciclo do café levassem o País para a frente. Agora, um ciclo do petróleo fará esse milagre?

IS: É preciso, de fato, ver que a questão social é determinante, que um País não se torna rico apenas porque tem recursos naturais. No período neolítico, o homem caçador-coletor simplesmente recorria a tudo que a natureza provia aleatoriamente, sem qualquer grau de organização. A fotossíntese produzia plantas, sementes, frutos e folhas e permitia a existência de animais. Ambos, vegetais e animais, eram apropriados na forma de caça ou coleta. Essa estrutura se altera drasticamente quando o homem, com sua capacidade de trabalho, pela primeira vez passa a domar e a orientar a fotossíntese, colhendo sementes e selecionando animas. Fez assim uma revolução agrícola que altera a existência humana na face da Terra. Cria-se uma nova estrutura social. A atividade produtiva, a partir daí, passa a ser essencialmente social, com hierarquia para guardar sementes, dividir as terras e organizar a produção.

Esse processo se estende por cerca de 10 mil anos, até o fim do feudalismo na Europa e a emergência da Revolução Industrial. E é o desenvolvimento do capitalismo, o período pós-Revolução Industrial, cujos aspectos sociais precisam ser discutidos hoje. Esse capitalismo, muito competitivo na sua etapa inicial, até fins do século 19, torna-se monopolista, formam-se oligopólios. No setor de energia, isso é absolutamente claro, com o cartel da indústria elétrica, o do petróleo, por exemplo. E a oligopolização se dá porque se juntam a grande indústria e o capital bancário, para se formar a entidade central de nossos dias, que é o capital financeiro, como Marx percebeu e como perceberam os líderes revolucionários socialistas que fizeram a crítica da social-democracia, no início do século 20. E não é difícil perceber também que o modelo vigente de exploração do petróleo é baseado nos mesmos princípios do sistema financeiro internacional, criado a partir dos anos 1980 e que o fato de esse sistema ter acabado de ruir nos deve levar a profundas reflexões.

RB: O senhor é um dos grandes intelectuais brasileiros. Na sua área, é um expoente, com certeza. Mas a impressão que fica de sua intervenção é a de que o senhor considera a política como algo muito importante, talvez mais que o trabalho intelectual. Vimos pelos jornais a sua reação muito dura, de quase indignação, diante das tentativas de depreciar o papel da Petrobras. Agora, vemos que, de fato, o senhor está formulando uma proposta, criando como que a bandeira de uma campanha...

IS: Em toda a atuação do grupo do Instituto da Cidadania na área de energia, nós procuramos formular uma proposta concreta, para uma entidade concreta, a campanha popular que levou Lula à Presidência da República. E não formulamos um modelo a partir de nossas idéias apenas; não formulamos um modelo ideal, mas aquele possível, dada a correlação de forças concretas. Avaliávamos que havia um avanço suficiente na sociedade brasileira para permitir a apropriação do excedente econômico, produzido nas empresas estatais, sob controle do Estado, para fins sociais mais amplos. A proposta de apropriar o excedente econômico visava resgatar as populações alijadas – umas sem acesso ao combustível, outras sem acesso ao transporte, outras sem acesso à energia elétrica. E era essa a lógica que parecia estar presente no governo Lula, que tendia ao socialismo. Mas essa proposta, sorrateiramente, foi abandonada no setor elétrico e não implementada no setor de petróleo e gás. Por isso, a proposta que colocamos hoje...

RB: Daí sua idéia de uma campanha, de uma mobilização popular...

IS: Sim, claro. Primeiro, é necessário criar força política para aprovar as propostas e garantir sua execução. Do contrário, como já disse, mais uma vez prevalecerão os interesses dos oligopólios. Na partilha do modelo de exploração da cana-de-açúcar, por exemplo, quem se apropriava do excedente econômico eram os financistas da Holanda, na fase anterior ao império inglês. Agora, algo semelhante pode acontecer no setor de biocombustíveis, que vai se tornando importante, porque grande parte das terras brasileiras está sendo arrendada e mesmo vendida a grupos internacionais que vêm aqui comandar o processo de produção e se apropriar do excedente econômico criado. E o que os trabalhadores ganham? Emprego em condições de trabalho muitas vezes próximas das inadmissíveis para o século em que nós vivemos hoje. E, se houver mecanização, nem sequer muito emprego.

RB: Se entendemos bem, o senhor acha que a nova campanha do petróleo pode evoluir para discutir novamente o rumo a ser dado para o País, de certo modo uma discussão que, com a posse do governo Lula, parou?

IS: Pode-se dizer que sim, com a ressalva de que procuro falar sobre a área de meu maior conhecimento científico e técnico. Falo, portanto, da formulação de uma política de desenvolvimento econômico e social que necessariamente tem de estar ancorada numa política energética que leve em conta todas as condições sociais. Procuro falar de uma perspectiva histórica. O excedente econômico que propusemos usar no governo Lula é fruto de uma longa história de mais de 50 anos de luta e de trabalho do povo brasileiro para construir seu sistema estatal, para construir sua força de trabalho. Uma luta de realizações gigantescas. Que foi capaz de elaborar e implementar o setor elétrico interligado nacionalmente, dominando os recursos naturais hidráulicos. De criar o sistema Petrobras tecnologicamente tão avançado quando os mais avançados do mundo.

RB: Sua proposta de campanha parte também da idéia de que há uma nova conjuntura, de que pode haver uma nova mobilização popular, em função da falência do modelo neoliberal.

IS: Sim. Esse modelo foi uma reciclagem das idéias liberais, a partir dos anos 1980. Ele sucede ao keynesianismo, adotado após a quebra do sistema financeiro em 1929.

Àquela altura, havia uma alternativa clara não só ao modelo liberal do capitalismo monopolista, mas ao próprio capitalismo: era o socialismo, da Revolução Russa de outubro de 1917. É nesse contexto que o keynesianismo se desenvolve, que nos EUA se criam estruturas que não visavam apenas produzir energia, mas também organizar a produção ao assumir as atividades de maior risco. Lá e no Brasil também, com Getulio Vargas, depois da Revolução de 1930, se faz aquilo que o sociólogo Francisco de Oliveira descreve como a criação do antivalor e da antimercadoria. Isto é, aquele valor que é produzido pelo Estado para ser colocado no sistema econômico para, de um lado, diminuir os riscos da produção e, de outro, permitir a reprodução da força de trabalho com mais benefícios e maior lucratividade. O modelo keynesiano de intervenção estatal permitiu que o capitalismo internacional permanecesse com altas taxas de lucro até o começo dos anos 1970. No Brasil, o modelo keynesiano tem características próprias, e várias etapas se mantêm mesmo sob os governos militares dos anos 1964 -1984. Mas, desde o fim dos anos 1980, cria-se um novo paradigma, que começa a ser aplicado no Chile, o primeiro laboratório concreto das idéias neoliberais.

No Chile, a ditadura de Pinochet e seus Friedmann Boys, os monetaristas da escola de Chicago, testam a visão de que o Estado do bem-estar social precisava ser destruído, pois a lucratividade e a produtividade do capital não estavam em níveis adequados. Os excedentes econômicos, dizia-se, estavam sendo apropriados pelos direitos sociais, educacionais, trabalhistas, previdenciários e todo um conjunto de atividades, tanto no plano mundial como no dos países individualmente. É no bojo desse ataque que é colocada em questão toda a estrutura de produção hegemonizada no Brasil pelos sistemas Eletrobrás, Telebrás, Petrobras, BNDES e Siderbrás.

RB: Mas há uma alternativa ao capitalismo neoliberal ou liberal? Uma das grandes marcas do avanço liberal foi o desmoronamento da União Soviética, a aparente destruição do que parecia ser a verdadeira alternativa, o socialismo.

IS: Muitos esquecem que, além da reforma neoliberal do fim dos anos 1970, houve também a reforma do sistema socialista, na China. O sistema soviético desmoronou; o chinês, não. Os chineses reformaram o sistema estatal, mas basicamente o mantiveram. Tinham 300 mil estatais e hoje têm 150 mil, li num artigo recente, que dizia também que o balanço desse sistema de empresas é muito positivo. Aliás, é a China que pode permitir uma maior estabilidade no sistema econômico internacional, depois da crise americana. Isso é lógico. É a estabilidade dada pelo controle de produção. De certo modo, é o reconhecimento de que é o trabalho humano na transformação da natureza que gera valor, o resto é especulação, que, mais cedo ou mais tarde, pode cair como um castelo de cartas. Os americanos estavam consumindo cada vez mais, apoiados na bolha especulativa imobiliária. O mesmo ativo, a mesma casa, crescia de valor ano a ano, à medida que os títulos emitidos em torno da casa circulavam e aumentavam ficticiamente de valor. Na Holanda, em 1630, se não me engano, uma tulipa chegou a ter, entre os cidadãos, o valor de uma casa. Até que, de repente, o castelo de papéis desmoronou, todo mundo acordou da embriaguez. E a tulipa passou a ser uma mera tulipa, assim como, agora, uma casa passou a ser uma mera casa, que não circula – uma mercadoria muito particular...

RB: Finalmente, quanto aos aspectos técnico-científicos do petróleo do pré-sal...

IS: O petróleo é da época da separação África-América do Sul. Todo petróleo é energia solar acumulada. No caso específico do pré-sal, sua origem remonta há cerca de 110 milhões de anos, quando um super-continente – o Gondwana – trincou-se em duas porções hoje correspondentes à América do Sul e à África, que, de início, então, estavam encaixadas uma na outra. Pernambuco estava encaixado mais ou menos onde hoje é a Nigéria. A partir dessa trinca, a água toma conta do espaço de modo que, a certa altura da história, forma-se ali uma imensa poça de mar fechado cujas condições ambientais permitiram, ao longo de milhões de anos, a contínua acumulação de energia solar em matéria orgânica, como algas, microorganismos etc. Gradativamente, então, aquele mar se evapora até deixar uma camada de sal, enquanto parte da matéria orgânica vai se entranhando abaixo dela em uma matriz geológica hoje chamada de microbiolito, onde ocorre sua lenta transformação em petróleo.

Conforme os continentes se separam, parte do microbiolito fica do lado da África, entre Nigéria e Angola, e parte fica do lado da América, entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Nesse longo processo de afastamento, há também uma série de outros movimentos horizontais e verticais mais localizados, como dobramentos e recorrimentos, e imensas bolhas de petróleo do microbiolito migram para cima, ultrapassam a camada de sal e ficam retidas nas camadas impermeáveis que compõem hoje as bacias do pós-sal, do Espírito Santo, de Campos e de Santos. Outra parte desse petróleo fica retida abaixo da camada de sal, que vai se tornando mais impermeável à medida que se consolida.

Esse movimento migratório do óleo se explica também pelo fato de ele ser menos denso do que a água. Aquecido nas camadas mais fundas, ele tende a se fluidizar e subir. Se não encontra uma armadilha impermeável, ele segue para a atmosfera, sofre transformações químicas e se evapora. Some simplesmente.

Essa é a hipótese básica: a de que o petróleo que está acima e o que está abaixo dessa camada de sal têm a mesma origem, pelo menos parcialmente. É por isso que, quando se descobriu que a matriz de microbiolito está presente desde Santa Catarina até o Espírito Santo, formulou-se imediatamente a hipótese da ocorrência de petróleo no pré-sal.

RB: Qual o papel da Petrobras nessa história?

IS: É importante mostrar que a descoberta do petróleo do pré-sal é uma prova inequívoca do enorme valor técnico-científico da empresa. Foi a Petrobras, nas últimas décadas, que fez o modelo de como o óleo embebido na formação de microbiolito migrou por cerca de uma centena de milhões de anos e de como o reservatório de óleo ficou preso sob a armadilha impermeável do sal. Foi a empresa também que testou, na prática, esses modelos, acabando, finalmente, por confirmá-los ao descobrir o petróleo.

Figura com foto de Yuri Martins.

Texto original: http://www.aepet.org.br/index.php?1MDO0gDO1ETO10zbkVXZ052bj9FZpZiN98GZ1VGdu92Yf9GcpRnJ39Gaz91bkVXZ052bj1jbvlGdjFmJvRWdlRnbvN2Xk5WZ052byZWPlN3chx2Y1MTNxIjM

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